Paquistão: o que fazer em relação ao Fundamentalismo Religioso?

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Farooq Tariq.

por Farooq Tariq, porta voz do Labour Party Pakistan, tradução: Mariana Riscali

“Vamos negociar com a ISI [Agencia de Inteligência Paquistanesa] e os Militares paquistaneses e vamos recrutar estes mujahideen. Aqui há um debate muito forte que é… não foi um mau negócio acabar com a União Soviética, mas sejamos cuidadosos com o que nós semeamos, porque iremos colher depois.” -- Hillary Clinton (23 de Abril de 2009)

Mais uma vez o Paquistão tornou-se foco de atenção mundial. Todos os dias há notícias sobre o último ataque suicida ou sobre operações militares, com mortos, feridos e comunidades desalojadas. Recentemente escolas foram ordenadas a fecharem suas portas por mais de uma semana. Até mesmo crianças falam sobre mortes e ataques suicidas.

Com mais de 1.125 postos policiais, Islamabad tornou-se uma fortaleza. Lahore e outras cidades maiores sofrem pelo mesmo motivo: há bloqueios policiais em todo lugar. Depois de cada ataque terrorista as autoridades emitem outro alerta de alta segurança e montam barreiras adicionais. O irônico é que, até recentemente, os oficiais e a mídia descreviam estes “terroristas” como Mujahideen lutando por um mundo islâmico.

Sob imensa pressão da administração Obama, o governo paquistanês lançou uma série de operações militares em várias partes do país. Isto levou a uma onda de mortes sem precedentes, com centenas de milhares de pessoas forçadas a deixarem seus lares e buscarem abrigos temporários.

Expulsos do Afeganistão depois do 11 de setembro, fanáticos religiosos de diferentes nacionalidades encontraram refúgio no Paquistão. Eles têm dois alvos: tornar o Paquistão um país mais islâmico e ensinar ao governo uma lição por sua relação de proximidade ao imperialismo norte-americano. Entretanto, o preço é pago pela população do país.

Os fanáticos religiosos são novos fascistas. Eles acreditam na eliminação física de seus oponentes políticos. Embora eles possam aparentar serem antiimperialistas, eles não são uma força progressiva. Ao contrário, eles são uma força de extrema direita que quer fazer retroceder o relógio da história.

A religião do Estado

O Paquistão também é conhecido como República Islâmica do Paquistão. A religião faz parte do Estado, a constituição e o judiciário estão cercados pela demagogia islâmica. Grande parte do currículo educacional também está colorida pela ideologia islâmica; até mesmo as teorias científicas conseguem de algum modo se inserir na religião. A religião tornou-se um modo de vida. Cada doação feita à caridade acaba nos cofres das instituições religiosas. A vida sem religião é impensável.

Embora a única racionalidade para o Estado paquistanês seja ser um país muçulmano, este deveria ser um Estado muçulmano secular. Quando o Estado foi formado em 1947 a população não era fundamentalista, mas com o passar do tempo o Paquistão adotou uma ideologia islâmica que hoje dá a estes fanáticos uma base mais favorável para a promoção de seu sonho de ter um país islâmico.

No final dos anos 1970, com a invasão russa ao Afeganistão, Washington deliberou que precisava desenvolver uma força de oposição nativa. Para lutar contra o “comunismo” no Afeganistão, Washington trabalhou com o ditador militar paquistanês, General Zia Ul Haque, e a Inteligência Paquistanesa (ISI). Há dezenas de livros que explicam a ascensão do Taliban e dos Mujahedeen sob a liderança direta dos norte-americanos. Mesmo após a retirada Soviética em 1987, a ISI não tinha razão para acabar com este projeto. Se os norte-americanos não estavam mais interessados nestas guerrilhas, a ISI achou estes jihadis úteis em seu conflito com a Índia pela Kashmira.

Em segundo lugar, há muitos partidos políticos religiosos no Paquistão. Jamaati Islami e Jamiat Ulmai Islam, junto com outros partidos Sunitas e Wahabi, são a favor de uma Revolução Islâmica. Eles também dão apoio político aos fanáticos religiosos do Taleban e da Al Qaeda.

Hillary Clinton admite o papel norte-americano

Até mesmo Hillary Clinton, Secretária de Estado dos EUA, reconheceu a responsabilidade de Washington por promover o fanatismo religioso. Esta é a sua confissão para um subcomitê do Congresso, em 23 de abril de 2009, de que os norte-americanos haviam efetivamente criado a atual situação desastrosa em curso no Afeganistão:

“Foi o Presidente Reagan em parceria com o Congresso liderado pelos Democratas quem disse: vocês sabem o que parece uma muito boa idéia… vamos negociar com a ISI [Agencia de Inteligência Paquistanesa] e os Militares paquistaneses e vamos recrutar estes mujahideen. Aqui há um debate muito forte que é… não foi um mau negócio acabar com a União Soviética, mas sejamos cuidadosos com o que nós semeamos, porque iremos colher depois.”

De qualquer forma, não são somente os norte-americanos que estão colhendo o que eles semearam. Muitos governos Paquistaneses estavam prontos para fazer qualquer coisa que os norte-americanos quisessem por pura ganância financeira. Desde 1978 os diferentes governos têm sido todos aliados muito próximos aos EUA. Isto inclui vinte anos de ditadura militar sob Zia (1977 – 1988) e sob o General Musharaf (1999 – 2008). Além disso, estes governos permitiram ao fanatismo religioso estabelecer instituições educacionais religiosas que mudaram a cultura religiosa do país.

As táticas Madrasas

Uma das principais estratégias usadas pelos fanáticos religiosos para levar a jihad à juventude paquistanesa foi através da abertura de escolas religiosas (madrasas). Elas brotaram sob a ditadura do General Zia ul Haque. Atualmente, há escolas religiosas em todo o Paquistão. Das mais de 15 mil madrasas registradas, cerca da metade está na região de Punjabi. Especialistas estimam que os números sejam ainda maiores: quando o estado tentou contabilizá-las em 2005, um quinto da área da província recusou-se a se registrar.

As madrasas encontram espaço entre a classe trabalhadora, já que elas propagandeiam a oferta de educação gratuita combinada aos ensinos religiosos. De fato, a falha do governo em fornecer os recursos adequados para a educação pública gratuita pavimentou o caminho para o progresso das madrasas. O Paquistão tem uma das taxas de alfabetização mais baixas do mundo. O governo gasta menos de 3% de seu orçamento com a educação, e somente cerca de metade dos paquistaneses sabem ler e escrever, muito abaixo da proporção dos países com renda per capita similar, como o Vietnam. De acordo com a UNESCO, uma em cada três crianças em idade escolar no Paquistão não freqüenta a escola, e entre aquelas que freqüentam um terço evade até a quinta série. A matrícula de meninas é uma das mais baixas do mundo, ficando atrás da Etiópia e do Iêmen.

Embora as madrasas representem apenas cerca de 7% das escolas primárias no Paquistão, sua influência é ampliada pelas lacunas do ensino público e pela religiosidade inata da população do campo, onde vivem dois terços dos paquistaneses. Estas madrasas são o verdadeiro solo para o crescimento do fundamentalismo religioso.

Os mais de 15 mil seminários religiosos registrados no país possuem mais de 1,5 milhões de estudantes e de 55 mil professores. Antes de 2002, de acordo com o Ministério de Assuntos Religiosos, o número de madrasas registradas não era maior que 6 mil. Depois do 11 de setembro, os fanáticos religiosos que deixaram o Afeganistão vieram ao Paquistão e, com o apoio dos dois governos da aliança religiosa MMA, da Província da Fronteira Nordeste e do Baluchistão, eles conseguiram rapidamente estabelecer mais madrasas. Em 2007 havia cerca de 13 mil seminários registrados pelo país. Em março de 2009, o número de madrasas registradas atingiu os 15.725. Ao mesmo tempo, o General Musharaf foi um grande parceiro na chamada “Aliança contra o terrorismo”. Ele estava manipulando ambos, os fanáticos e os imperialistas.

O crescimento do fanatismo religioso

A parceria dos fanáticos religiosos com os norte-americanos e as agências de inteligência paquistanesas permaneceu irrestrita até o 11 de setembro. Depois, todo o cenário mudou. Os Mujahedeen foram rotulados como terroristas e os EUA passaram a querer uma solução militar para o crescimento do fundamentalismo religioso.

O crescimento do fundamentalismo religioso não foi apenas o resultado das ações norte-americanas e das agências de inteligência paquistanesas, mas também da imensa falha dos governos civis e militares em resolver os problemas básicos da classe trabalhadora. Sucessivos regimes foram incapazes de acabar com o poder do feudalismo, com a natureza absolutamente exploradora dos capitalistas paquistaneses e seu tratamento humilhante aos trabalhadores e camponeses, com a repressão às nacionalidades minoritárias e a exploração dos recursos naturais.

A classe dominante falhou desgraçadamente em instituir a democracia no país. É por isso que toda vez que o governo civil foi golpeado por uma ditadura militar, a vasta maioria das massas não ofereceu nenhuma resistência à ditadura.

Estabelecendo tribunais islâmicos

O atual governo civil do Pakistan Peoples Party foi contraditório ao lidar com os fanáticos religiosos. Em Swat, eles acordaram com os fanáticos o estabelecimento de tribunais islâmicos na região. Apesar disso, as forças religiosas foram decisivamente derrotadas durante as eleições gerais de 2008. Nos locais onde nas eleições de 2002 receberam 15% dos votos, em 2008 receberam menos de 3%.

Logo após as eleições de 2008, quando as massas rejeitaram as forces religiosas, ao invés de uma mobilização massiva para acabar com o fundamentalismo religioso, o regime atual optou pelas negociações. Esta medida deu aos fanáticos um incentivo para irem além: eles demandaram a instauração das leis da Sharia também na província de Malakand. A medida foi aceita e um acordo assinado. Foi um verdadeiro estímulo para os fundamentalistas religiosos que então foram mais longe em seu esforço de controlar mais áreas e consequentemente chegando mais perto de conquistar Islamabad.

Em pânico, o regime com todo o apoio dos norte-americanos, iniciou uma operação militar na província de Malakand em junho de 2009. O resultado foi o desalojamento de mais de 3,5 milhões de pessoas e mais de 5 mil mortos. O governo atual vangloriou-se de uma vitória militar sobre os fundamentalistas e então chamou à população a retornar às suas casas. Entretanto não houve uma vitória do exército, e sim uma retirada temporária dos fanáticos. Eles mantiveram salva sua infra-estrutura e fizeram o mesmo que o Taleban no Afeganistão durante o ataque militar de outubro de 2001: um recuo, apenas para re-emergirem posteriormente.

A celebração da vitória sobre os fanáticos religiosos não durou nem um mês até que estes atacassem o quartel-general e diversos centros de treinamento policiais em diferentes partes do país durante o mês de outubro de 2009. Este mês foi considerado o mais sangrento, com muitas mortes em ambos os lados.

Afirmando que não havia outra opção, muitos liberais no Paquistão apoiaram as ações militares contra os fanáticos religiosos. Entretanto, nenhuma solução militar pode eliminar estes fundamentalistas. É como tem sido o caso do Afeganistão e como será no Paquistão. A opção militar não pode fazer nada além de forçá-los a irem para outras áreas. Os fundamentalistas religiosos usaram táticas de terrorismo urbano, e este não pode ser eliminado através da invasão das áreas consideradas sob seu controle. As ações militares em Malakand e agora em Wazirestan empurraram os fanáticos a outras áreas do Paquistão.

A falácia das estratégias de curto e longo prazo

A solução militar foi apresentada como uma etapa para a solução da luta contra o fundamentalismo. Ela faz eco à velha teoria stalinista que consiste em separar as reivindicações imediatas do objetivo final. Em alguns círculos sociais, a solução militar é reconhecida como uma estratégia de curto prazo enquanto a estratégia de longo-prazo requer reformas e maior desenvolvimento. Mas esta teoria é falsa e não irá resolver nada, pois é apenas uma desculpa para agradar o imperialismo norte-americano.

Não há meio termo entre a estratégia de curto e longo prazo. Para que a luta contra os fanáticos religiosos avance, ela precisa começar com um programa revolucionário. Ela deve começar com a vontade política de se separar a religião do Estado, e deve lidar com a questão da natureza do Estado Paquistanês. A religião não pode tornar-se a base de uma nação. Duas concepções sobre a nação paquistanesa se confrontaram pelos eventos ocorridos nas décadas de 60 e 70, quando Bangladesh passou a existir. Agora uma crise mais severa está em erupção no Baluchistão sobre bases similares, onde se desenvolve um forte movimento que reivindica a independência do Baluchistão.

Um pacote completo

É preciso que haja um programa concreto para enfrentar o fundamentalismo religioso. É preciso combinar uma forma de lidar com os ataques suicidas e frear as atividades das forças fascistas em suas fortalezas, junto com um plano de ação geral nos campos econômico, político e social. Este programa deve incluir a nacionalização das madrasas religiosas e um re-treinamento dos professores. Deve incluir também um aumento imediato dos salários dos trabalhadores no setor público e privado para no mínimo 12 mil Rupias por mês [aproximadamente R$ 250].

Todas as leis discriminatórias devem acabar e todos os cidadãos paquistaneses devem gozar de igualdade constitucional, já que atualmente há muitas leis que rebaixam as minorias religiosas a cidadãos de segunda categoria. O governo deve estar comprometido e apoiar completamente as resistências locais ao fanatismo religioso. As organizações da sociedade civil que atuam nas áreas onde estão presentes os fundamentalistas religiosos devem ser completamente apoiadas pelo Estado para que possam funcionar, e o Estado deve ajudar a fortalecer e sustentar os comitês de defesa locais que lutam contra o fanatismo religioso.

Todos os sindicatos devem ser restabelecidos no setor público e privado, com plena liberdade de expressão e associação. O atual governo civil busca por soluções militares, e enquanto isso a maioria das leis discriminatórias ainda estão intactas, incluindo as leis contra a blasfêmia. O governo não tem planos de acabar com estas leis discriminatórias promulgadas sob as ditaduras militares, portanto as organizações da sociedade civil devem demandar ações do governo para restabelecer os direitos.

As forças do fundamentalismo religioso se organizam em uma base internacional, portanto uma luta contra elas deve ser organizada no mesmo nível. A “guerra ao terror” dos EUA está alimentando ainda mais o fundamentalismo religioso, pois ela é vista como uma “guerra aos muçulmanos”, e a ocupação do Iraque e do Afeganistão pelas forças imperialistas está fornecendo aos fanáticos religiosos a justificativa política para suas atividades terroristas. Esta ocupação deve acabar. A campanha pelo fim da ocupação do Iraque e do Afeganistão – e que deve ser também contra o fanatismo religioso – pode ser a base para uma ação unificada das forças progressivas internacionalmente, e deve também ser parte de uma campanha antiglobalização organizada por todas as forças progressivas.

Nós devemos nos opor a ambas: a ocupação e o fundamentalismo religioso, e não apoiar uma contra a outra. A luta entre fundamentalismo religioso e os imperialistas é uma luta entre touros, não há muito a ganhar ao ficar ao lado de um contra o outro. É preciso acabar com esta luta. É preciso abrir um outro espaço para a criação de um modo de vida alternativo.

Texto original em: http://links.org.au/node/1325